Boyhood

Boyhood - Da Infância à Juventude (2014 Direção: Richard Linklater Elenco: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke e Lorelei Linklater.

Boyhood (2014)
Direção: Richard Linklater
Elenco: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke e Lorelei Linklater.

O que fazemos das nossas vidas? Qual o nosso propósito? Temos um? Temos que nos preocupar com isso? Onde estaremos em um ano? E em dez? Se planejarmos as nossas vidas, então viver é apenas seguir um plano previamente estabelecido? Ou devemos improvisar? Ou os dois? Temos escolha?

Com delicadeza e simplicidade raras em qualquer arte, o filme Boyhood, faz todas essas perguntas e sabiamente não responde nenhuma. É um filme sobre a passagem do tempo, sobre a juventude e o amadurecimento, gravado ao longo de doze anos, no qual acompanhamos sem piscar a vida do jovem Mason em pequenos fragmentos, pequenos instantes, significativos ou não, dos seus 6 anos até seus 18 anos.

Nas quase 2 horas e 45 minutos de filme, vemos um garoto tímido crescer através de curtas passagens na sua vida. Segundo o diretor Richard Linklater, o mesmo da trilogia de Antes do Amanhecer, todos os anos ele reuniu os atores e a sua equipe para apenas 3 ou 4 diárias de filmagem. É um trabalho meticuloso e bem-pensado, que se reflete em uma história que é quase uma não-história. Não-história porque não há trama que percorra o filme. Assim como nas nossas vidas, qualquer situação que pareça difícil de ser superada se torna uma mera lembrança anos depois, sendo apenas acrescentada ao conjunto de memórias de que somos feitos.

Existem filmes cujos tramas abarcam acontecimentos maiores do que a vida. Os exemplos mais extremos que eu me lembro agora são dois dos meu longa-metragens preferidos: 2001 – Uma Odisséia no Espaço, cuja trama  é a própria aventura da humanidade, ao longo de milhões de anos, do seu surgimento até o seu provável fim, e A Árvore da Vida, que precisa contar antes de tudo o início do próprio Universo, a formação das estrelas e o surgimento da vida na Terra para colocar em perspectiva um drama familiar durante a década de 1950.

Boyhood, por outro lado, é um filme que cujo tamanho é uma vida. Mas apesar de ser mais concentrado em um espaço-tempo especifico que os outros dois, também compartilha o mesmo olhar sobre a efemeridade da vida. Afinal, é um filme sobre a experiência humana pura e simples. Assistir Boyhood  é como ver um álbum de fotos, lembrando-se da época em que elas foram tiradas. Dessa maneira, pondo os diversos períodos de uma vida à nossa frente, o filme nem sequer propõe que reflitamos sobre as nossas próprias, apenas sugere discretamente, não mais do que faz um retrato.

boyhood

É interessante notar como em diversas cenas esperamos que algo de trágico vá acontecer, alguma morte ou algum acidente logo após algum diálogo que pareça ser um prenúncio. Ou então esperamos que os personagens tomem atitudes desesperadas, que o melodrama se aprofunde e que rios de choro e emoção fluam. Bom, nada disso acontece como esperamos e quase tudo termina bem. Afinal, quantas vezes não estivemos perto de fazer alguma besteira realmente séria quando jovem? E a maioria de nós está aqui ainda, não é verdade? Dando destaque para essas cenas, o diretor nos conduz a refletir na sorte que temos apenas por estarmos respirando.

Mesmo assim, perto do final do filme, um dos personagens se decepciona, ainda que esteja feliz com a própria vida, e diz “E agora? Achei que seria mais!” Na cena seguinte, em outro lugar e alguns dias depois e com outras pessoas, o protagonista indiretamente responde que a vida “é sempre o agora”. No final, tudo o que temos é esse instante, esse de agora, que você está usando para terminar de ler esse texto. O que você vai fazer depois?

O Espiral da Escuridão

"Covered Alley in Atrani" - M.C. Escher, 1931

“Covered Alley in Atrani” – M.C. Escher, 1931

Sem nada a perder, eu desci o espiral da escuridão.
Desci, desci e desci mais, cego e sem saber se descia ou se subia.
Quando os olhos não enxergam, a mente olha para si mesma.
Na noite vivem os sonhos ou vivem os pesadelos.
Às vezes os dois, dançando de mãos dadas.
Eu desci e continuei a descer.
Por que afinal de contas, acho que nunca aprendi a fazer outra coisa.
Não há vida que sobreviva à queda súbita no abismo.
É por isso que eu desço gentilmente, passo à passo.
É por isso que eu converso com as imagens e as formas que surgem.
Os fantasmas que aqui vivem também descem comigo, cada qual no seu ritmo.
Se eles são os meus fantasmas ou se sou eu o fantasma deles, eu não sei.
O espiral desce para todos e no fim é tudo isso o que há para fazer.
Não há nada no nosso caminho, só o vácuo e as ilusões que nele surgem.
Então todos descemos, sem nada a perder, rumo ao chão que se espalha sem fim, a última ilusão possível.
Há degraus tão grandes que se parecem com chãos.
A primeira coisa a se perguntar quando se pára de descer é por quanto tempo será possível seguir em frente
Até que se encontre a borda que nos rodeia
E a descida continue.

O tempo e a aparência

Pinóquio e a Fada-de-Cabelo-Turquesa

Pinóquio e a Fada-de-Cabelo-Turquesa

Quanto mais o tempo passa, menos tempo se tem. A falta de tempo já começou a ser um problema desde o século XIX nas primeiras sociedades industrializadas. Lá pelas tantas no século XX, alguém já deve ter morrido por falta de tempo. Hoje, pleno século XXI, em cidades como essa São Paulo em que eu vivo, tempo é artigo de luxo e a sua falta é questão de saúde pública epidêmica. Se viver é aproveitar o tempo, então morremos todos os dias.

Pra piorar a questão, há também o fato de que o tempo é relativo. não apenas de acordo com a Física e as teorias de Einstein, mas ele parece variar em relação à situação em que estamos. Todo mundo percebe isso: se você fica preso duas horas no trânsito parece sentir o seu corpo envelhecer, mas aquela festa perfeita com todos os amigos sequer vai parecer ter existido se durou as mesmas duas horas. Paradoxalmente, a memória funciona de maneira oposta: anos depois você ainda se lembrará da festa, até com alguns detalhes caso não tenha bebido muito. Mas do trânsito não, esse tipo de memória tem um tendência maior a se misturar com as outras situações parecidas, tornando-se parte de uma mistura de memórias relacionadas que não remetem à um momento específico, mas à experiência de ficar preso no trânsito. Não que isso também não vá ocorrer com a lembrança daquela festa específica. Ela também irá se misturar com outras festas parecidas, tornando-se numa colagem de momentos a que chamamos de experiência de festa. Com mais tempo, esses amontoados de memória se tornam na nossa imagem mental de termos como “felicidade”, “juventude”, etc.

Mas a questão do tempo qualitativo não é um assunto novo. Como eu aprendi nesse texto aqui, os gregos já faziam essa distinção de tempo há uns três mil anos atrás. A palavra chronos define a passagem do tempo da maneira mundana como contamos, são as horas que passam, os dias que correm, anos que voam. Mas há também a palavra kairos, que define os momentos da vida que podem durar pouco, mas que se tornam numa espécie de universo auto-contido cujas  sensações perduram. Kairos são os momentos marcantes, não necessariamente bons. Um exemplo comum é a primeira relação sexual, que nem de longe é boa pra todo mundo, sendo até traumática em alguns casos, mas que de uma maneira ou de outra marca a vida de qualquer um.
Então a crise de tempo que vivemos é uma disfunção entre chronos e kairos . Queremos nosso tempo bem-aproveitado à toda hora, viver a vida que deixamos de lado. Quando conseguimos, fazemos tudo ao mesmo tempo e não valorizamos os momentos, o chronos, não se torna kairos. E a tecnologia só incentiva isso, basta ver em shows o quanto o público utiliza seu celular para “registrar” o momento ao invés de simplesmente aproveitar o show. Redes sociais se tornaram numa vitrine das nossas vidas, onde expomos cada um dos nossos kairos. Mas como a galinha do vizinho é sempre a mais gostosa, fica fácil pro indivíduo sentir que todos à sua volta aproveitam melhor a vida do que ele, ainda mais se o indivíduo em questão não aproveitou seus momentos como deveria e não os tem retidos na memória. Daí que muitos partem pra uma obsessiva busca pela vida intensa, nem que seja na aparência. Ou talvez principalmente na aparência.

Assim como o boneco Pinóquio, somos todos ficções querendo se tornar realidade.


BONNUS TRACK!

Abaixo um texto que eu escrevi há meses e que tava perdido no meu evernote. O tema é quase o mesmo, o que significa que não é de hoje que o tempo tem sido um problema pra mim (mas isso já dá pra adivinhar pela frequência com que eu posto aqui).


Acordei naquele dia e percebi que perdia meu tempo. Perdia meu tempo com os meus deveres, perdia meu tempo com os meus prazeres. O tempo fugia de mim. Às vezes eu tinha alguns vislumbres de tempo. Em uma hora esperando ela chegar eu lia um livro, eu observava as pessoas, me concentrava na arquitetura da cidade. A cidade do tempo, sem-tempo. Ninguém tem tempo. O tempo passa pra todos, passa pelo mundo. E o mundo se consumia e se contorcia, sem tempo, sem ar sem vida. A vida era outra também. Acordei naquele dia e via a vida sem vida. Às vezes eu queria morrer. Sem tempo pra vida. Voltando pra casa naquelas noites, avistava a morte vivendo nas ruas. A morte vem sem pressa, chega quando tiver de ser, tem tempo. Sempre há tempo para o não-tempo. Então eu vivia a morte. Na minha vida interior, não contada, brotava em mim um sonho de tempo ganho, de tempo vivido, esperança de vida, me apegava a ele nas manhãs quietas, no fino tempo entre o sonho e a vida. Pensei no tempo, na morte e no sonho, mas a vida me arrastou. Acordei.

Meus céus

Hoje pela primeira vez em anos eu me senti recompensado ao olhar para o céu.

Era lindo e eu me surpreendi. Estava amanhecendo e havia um tom de laranja queimando o púrpura que ainda predominava no zênite. Havia uma garoa fraca. Havia um arco-íris duplo no lado oposto ao nascente. Havia algo raro hoje de manhã.

Eu coleciono esses momentos. Eu guardo céus para mim.

Hoje pela primeira vez em anos eu assisti à beleza absoluta que surge independente das mesquinharias e dissabores que nós, seres humanos, nos ocupamos tanto. É essa a beleza que nos livra de sermos o que somos. É ela que nos permite e nos salva. Simples, natural e inalcançável. Não foi criada por ninguém, nem mesmo por qualquer suposta entidade sobrenatural. Apenas átomos reunidos na atmosfera, reagindo à luz solar. Simplesmente está lá. Para mim é algo reconfortante saber que exista beleza independente de qualquer vontade humana. Algo raro, livre da nossa estupidez.

Eu coleciono momentos raros, eles são importantes para mim.

Eu tenho essas lembranças mas evito encontrá-las. Apenas guardo para mim.

Hoje pela primeira vez em anos eu resolvi abrir esse baú. Nele havia guardado de tudo: nascentes, poentes, arcos-íris, chuvas de verão, tempestades, estrelas e a Via Láctea reluzente à olho nu, essa minha preferida, rara nos últimos tempos, vista por coincidência no pior dia da minha vida até hoje, quando eu descobri que jamais voltaria a falar com meu irmão.

O céu não surgiu para nos reconfortar, ele não está lá para o nosso deleite. O céu é o que há quando não estamos ocupados em viver.

Pensando nisso enquanto escrevia esse texto, pela primeira vez em anos, eu chorei.

Todas as coisas

Todas as coisas que eu não tive tempo de dizer para você e que seriam iniciadas a partir daquele “oi” e que no fim foram esquecidas e para sempre perdidas quando começamos a falar sobre um outro assunto totalmente diferente. A confusão que me era perfeitamente inteligível tornou-se desnecessária e foi substituída por uma lucidez difícil de entender mas que me delicia quando tento desvendar com a sua ajuda. Há mistérios que eu gostaria de entender com você.

Todas as coisas que eu quase disse para você e que não tem a menor importância frente as coisas que você me diz e que por sua vez não devem ter a menor importância para você são a tentativa patética de demonstrar o tipo de coisa que se passa na minha cabeça enquanto a gente conversa e fala sobre as coisas que não tem a menor importância de um para o outro frente ao fato de estarmos simplesmente conversando. Às vezes eu quero que você cale a minha boca.

Todas as coisas que eu tento descrever e que soam confusas. Todas as coisas que eu não entendo por que fiz. Todas as coisas que me fizeram feliz.

Todas elas dançando e pulando na minha mente enquanto tento falar com você.